Neve de Sangue - Final
Eu me encolhi sobre minha cama enquanto os gritos ecoavam fracamente até meus ouvidos, nada mais do que sussurros tão fracos que pareciam apenas ecos em minha mente, de gritos que outrora escaparam de meus lábios, e poderiam ser se as vozes não fossem tão diferentes da minha. Eu poderia tapar minhas orelhas com as mãos, mas de nada adiantaria, como percebera em tentativas passadas, as vozes já estavam gravadas em meus tímpanos e mesmo que eu os perfurasse acho que ainda os ouviria...
Mas logo eles não eram mais o som que fazia meu sangue gelar, não era o motivo para meu coração falhar e minha garganta se apertar. Os passos, estes eram o meu mais novo terror. Passos pesados e firmes, botas de caça sujas de neve e lama que colidiam contra o mármore branco e impecável do corredor, com rudeza e despreocupação. Passos que se aproximavam, passos que vinham até mim.
As batidas em minha porta eram secas e firmes, fazendo a madeira branca de minha grossa porta vibrar fracamente. Esta era uma batida amigável, quase um ritmo descontraído, ao menos o seu dono queria parecer inofensivo. Mas ele não conseguiria, ele não era capaz de me iludir. Ele não aprendera nada, mesmo estando ao lado dela desde o inicio.
Era uma vez um homem, um muito diferente de meu pai. Eu não havia conhecido muitos homens e minha vida, mas aquele era de longe o mais marcante e inesquecível que eu já colocara os olhos uma vez. Não que ele fosse belo e deslumbrante, longe disso. Ele era inesquecível por sua brutal aparência de caçador, um ser que vivia da morte. Ele deveria ter uns dois e meio de altura, mas para mim parecia um gigante de três metros para mais. Lembrava-me um urso por conta de seus ombros e costas largas, seus braços eram recobertos por largas faixas de músculos de força crua capaz de abater um logo apenas lhe dando socos. Este homem selvagem arrastou-se para dentro de minha casa na sombra da Víbora, e lá se instalou no inicio apenas como um caçador que provinha a melhor carne para nossos banquetes retirada brutalmente da floresta vizinha. Mas logo ele se expandiu enquanto meu lar era demolido, até que atingiu o posto de conselheiro, e guarda-costas de minha Madrasta. Apenas uma desculpa para justificar a extrema proximidade de ambos.
Aquilo não me enganava, ele ainda não passava de um caçador sem escrúpulos. Só que agora ele não mais ia até a floresta atrás de sua presa. Não... Agora só encontraria o que lhe era exigido nas cidades, nos bares entupidos de jovens frescos e saudáveis. E mesmo em suas noites livres não era capaz de abandonar aquele seu instinto predador, caçando com a mesma ânsia de um lobo faminto, qualquer coisa que lhe prometesse lhe entreter noite adentro. Não era raro às vezes em que vinha bater a minha porta, em que me farejava pela mansão. Eu fugia, como uma lebre exasperada, e sempre conseguia, com algumas dolorosas e imundas exceções, escapar de suas garras invasivas.
- Minha criança está acordada? – sua voz era rouca e gasta, como o rosnado de um lobo, e ele jamais poderia maquiar isso, como fazia agora tentando soar suave e amigável.
Meu estomago se revirou ruidosamente com aquelas palavras. Meu sangue borbulhou em minhas veias com o uso de um possessivo a minha pessoa. “Minha criança” Não! Eu não era dele, muito menos dela e de nenhum outro demônio que habitava este mausoléu maldito! Eu não pertencia a ninguém, assim como nada me pertencia.
- Sua madrasta estava se perguntando onde estaria – eu pude ouvir suas unhas, sempre sujas de terra, pele morta, e algo vermelho que eu não reconhecia, arranhar minha porta como um gato carente. Mas eu sabia que ele se assemelhava mais a um tigre, feroz e faminto – ela esta ocupada agora para lhe ver, mas eu posso lhe distrair enquanto a espera...
A pausa de suas palavras trazia um silencio sugestivo. Engoli a amarga bile que se alojara em minha garganta enquanto meu ventre se contraia dolorosamente e minha cabeça vibrava com a enxaqueca que o estresse estava ameaçando trazer. Logo me descobri abraçada a minhas pernas, as costas viradas para a porta e os olhos fechados a força desejando silenciosamente adormecer e despertar deste pesadelo.
- Ande...eu sei que esta ai – sua voz mansa insistiu – eu posso ouvir o crepitar da lareira...eu posso sentir seu cheiro...
Eu também podia sentir seu cheiro. Ele escorria por baixo de minha porta e deslizava como uma serpente pelo meu quarto atrás de mim, deixando um rastro amargo de álcool, terra e cachorro molhado. Eu sabia, no entanto, que eu só podia senti-lo por ele já estar gravado em minha memória, marcado pelo fogo de meu ódio sobre minhas narinas. Eu sempre me lembrava dele através daquele cheiro, que já estivera em mim.
Eu mordi meu lábio inferior enquanto engolia o choro que se revirava em minha garganta, exasperado para sair e aliviar o pesar que sempre me mantinha presa ao chão. Pesada demais para fugir. Malditas memórias. Seu eu pudesse pedir por algo a alguma estrela ou milagre a algum Deus, certamente amnésia seria minha primeira escolha. Nada de sapatinhos de cristal ou carruagens. Eu estava farta de cristal e Ela alcançaria uma carruagem com uma sobrenatural facilidade.
- Seu cheiro está tão forte – eu pude ouvi-lo inspirar profundamente e depois suspirar de um modo satisfeito, como um jardineiro ao cheirar suas criações perfumadas – diga-me porque estas tão forte hoje? O que andou aprontando criança... Esta tentando fugir novamente?
A carne marcada em meus pulsos formigou tentadoramente. Ah os meios de partir... Eram tantos. Eu nunca tinha coragem para ir até o fim, meu coração católico não me permitia. Mas aquela vez... Eu estava entorpecida pela dor que a Bruxa me causara, eu ainda podia sentir seus punhos cerrados em meu abdômen, em meu rosto, ao redor de meu pescoço... Quando voltei à realidade eu estava aberta, eu escorria pelo piso branco do banheiro. Tudo era branco e vermelho. Mas para tudo deve-se ter conhecimento. Eu não sabia como fazer do modo correto. Eu falhei. Eu só consegui mais cicatrizes.
- Ah esse seu perfume é... Delicioso – eu podia facilmente imaginá-lo salivar – Vamos criança deixe-me entrar. Vamos brincar.
Suas palavras me deixavam doente, a beira de vomitar tamanho o enjoou que seu cheiro trazia a meu estomago vazio. Cerrando os dentes para conter o grito de fúria que queimava em minha boca eu saltei da cama sem fazer nenhum som comprometedor. Eu agarrei a toalha encharcada de meu sangue, enrolando-a em uma pequena bola de tecido carmim, eu a joguei nas chamas de minha lareira, e me impacientei ao ver que as chamas não estavam furiosas o bastante para incinerá-la. Eu agarrei a garrafa de Whisky e hesitei ao ver a mancha vermelha em meu tapete, que estava impregnada com meu cheiro que tanto agradava o monstro do outro lado da porta que recomeçara a bater insistentemente.
Corri até minha cama, enfiando a mão sob o colchão até encontrar a lamina gelada da tesoura que eu ali mantinha guardada. Só por precaução, caso um dia eu acordasse com coragem. Quem sabe eu não falhasse na segunda tentativa.
Cortei o pedaço manchado do tapete e o joguei dentro da lareira. As batidas se tornaram mais violentas e impacientes. O lobo batia em minha porta.
- Não será uma criatura insignificante como você que vai me deter! – ele berrou como um urso impaciente – Abra essa maldita porta sua vadia!
Eu agarrei a garrafa. Parte de mim queria entornar todo aquele liquido. Fazer-me entorpecida para não sentir o que estaria por vir. Mas eu não me sentia tão covarde a ponto de fazê-lo. Não, hoje eu estava esperançosa. Suicidamente esperançosa.
Seus socos e pontapés eram violentos e animalescos. Eu podia ouvir o vidro de minha janela vibrar loucamente, e me surpreendia como ele não acabava por se partir de uma vez. Mas a porta já não era tão forte e determinada quanto ele. Não, caso fosse não teria se partido de suas dobradiças. Não teria falhado.
Eu me virei com uma das mãos, que segurava a garrafa nas costas, inspirando profundamente para repor o oxigênio que meu coração aos prantos de desespero queimava sem remorso. Meus olhos repousaram no cadáver pálido de minha porta, tombada ao lado, como um fraco soldado, por apenas alguns segundos. Eu só podia me permitir apenas alguns segundos de estúpida distração. Diante daquele monstro, eu só tinha alguns segundos para reagir. Gasta-los deste modo era estupidez suicida.
Era uma vez um lobo que conseguira entrar em minha casa.
No meio do portal, recortado pela escuridão do corredor estava um gigantesco vulto, que arfava como um animal impaciente. Ele vestia seu típico casaco de pele, que eu não sabia a que animal pertencia, mas de qualquer modo lhe dava uma aparência brutal. Lembrava-me um urso pardo pequeno ou um enorme lobo erguido em suas patas traseiras.
Ele deu alguns passos em minha direção, com suas botas de caça, trazendo para meu sagrado quarto a imundice de seu trabalho. Seus cabelos desgrenhados que traziam folhas e flocos de neve, formavam uma dura e rústica moldura, junto com a barba mal feita, em seu rosto marcado pelo tempo e brigas passadas. Havia uma cicatriz, um rasgo de alguma garra voraz e rápida, que descia por sua bochecha esquerda. Tudo isso somado aos seus olhos negros, que luz alguma conseguia penetrar, apenas favoreciam para a áurea sombria e macabra que irradiava daquela criatura maldita.
Seus olhos deslizaram por todo o meu quarto, como costumava fazer. O predador reconhecendo o terreno inimigo. Um relaxado predador, entorpecido pela já característica sensação de vitoria que lhe envenenava as veias e idéias. Por fim seus olhos se recaíram sobre os meus, envoltos pelas sombras que seus cabelos formavam em seu rosto atroz eu ainda podia reconhecer aquele típico brilho de malicia. Uma faminta malicia.
- Você errou muito desta vez não? – disse com sua voz áspera, os olhos fixos de um modo ansioso em meu improvisado curativo. A ferida formigou com a pressão de seu olhar – deveria ter acertado um pouco mais abaixo.
Ele abriu aquele sorriso amarelo por onde uma risada áspera e ácida escapou por seus lábios rachados. O som fez com que minhas entranhas se revirassem e minha cabeça pulsasse.
- Onde ela esta? – eu disse firmemente. Aprendi muito rápido que o medo de nada lhe ajuda. Não que eu não tenha mais medo, pelo contrario ele é meu eterno e fiel amigo, no entanto ninguém precisa saber disso.
- Sua madrasta? – ele deu mais um passo a frente, os olhos percorrendo meu corpo intensamente – ela acabou de acordar, está se recompondo, comendo algo... Porque perguntas? Você sabe muito bem a rotina desta casa.
Sim eu sabia. Eu sabia que ela permanecia adormecida por todo o dia, e que se levantava com a lua. Eu sabia que ela levava seu costumeiro tempo para se arrumar, e que logo em seguida ia se alimentar embora eu nunca tivesse visto criado algum adentrar seus aposentos com bandeja nenhuma sequer. Era apenas mais um mistério que eu somava aos milhares de outros que povoavam minha cabeça. Eu sabia a rotina de cada um daquela maldita mansão. Sabia que aquele maldito caçador não tinha muito o quê fazer enquanto sua mestra se recompunha, e que as distrações ali se resumiam a um único ato. Sabia também que ele havia recentemente descoberto em mim uma parceira em potencial para lhe acompanhar neste ato...
Falar era meu único recurso para evitá-lo. Ao menos atrasá-lo.
- Apenas confirmando – disse asperamente – e quanto a você? Não deveria estar caçando as preciosidades que aquela mulher lhe manda buscar? – afinal os gritos estão se acabando, eu quase disse isso.
- Não, para sua sorte estou aqui. E estou entediado – ele deu mais um passo em minha direção jogando o casaco de pele no chão, e intensificando o sorriso.
- Eu não vou brincar – minha voz não passou de um rosnado colérico.
- Todas dizem isso – ele arrancou o cinto de couro onde mantinha presas suas facas e pistola e avançou contra mim. Como um lobo dando o bote certeiro contra sua presa.
Ele se jogou em minha direção, os braços abertos prontos para me agarrar em um aperto de ursos, inquebrável e inescapável. As garras e presas amostra. A fera estava à vista. Graças a deus eu era pequena. Pequena e rápida, como um rato. Abaixe-me para escapar de suas garras, e me lancei para longe de si, caindo ao chão e rolando alguns centímetros para longe até colidir com algo duro e áspero que cortou minha perna. Eu engoli um gemido de dor enquanto afastava a faca que havia me cortado, e notava que estava sentada sobre o cinto dele. O grunhido de impaciência dele me trouxe mais urgência. Desajeitadamente eu puxei a pistola de seu coldre e me ergui de um salto, dando vários desastrosos passos para trás, de costas para a saída a arma apontada tremulamente para o rival.
- Como se você fosse capaz – ele disse aos risos enquanto me encarava debochadamente mirar o cano da arma para seu peito – você não ousaria me matar assim.
- Tem razão – eu disse asperamente mudando a mira em seu peito para a sua cabeça, acionando o gatilho no instante que minhas mãos se firmaram no metal da arma.
A bala rasgou o ar entre nós e enfiou-se em sua cabeça, abrindo caminho bem no meio de sua testa e rascando-lhe o crânio e ganhando liberdade novamente. Seus olhos arregalados e sua boca assustada, esta foi minha ultima visão dele antes de seu corpo amolecer com a morte e cair de costas sobre a lareira. As chamas preguiçosas novamente lamberam seu corpo como cães curiosos.
Eu me encontrava arfante, arfante pela euforia que vazia meus nervos tremerem de jubilo. Eu sentia meus lábios tremerem em um sorriso incrédulo e maravilhado enquanto eu encarava aquele cadáver, agora tão patético quanto um verme. Eu agarrei a garrafa que havia deixado cair ao chão, girando em seguida para o corpo que transbordava para fora da lareira, sua queda havia quebrado a grade, e seu rosto agora esta sendo carbonizado lentamente. Felizmente para ele eu era uma garota misericordiosa. Misericordiosa o bastante para acelerar o processo.
- Queime em paz – eu disse jogando a garrafa de whisky com violência dentro da lareira, onde se espatifou irrompendo em uma violenta e incinerante bola de fogo. As labaredas chicotearam em todas as direções, estendendo-se para alcançar todo seu corpo. Em poucos segundos havia apenas uma tora em chamas, mal dava pra lembrar que era um humano ali. Embora ele não fosse tal.
Eu poderia ficar assistindo aquilo eternamente, vendo sua carne derreter sobre seus ossos se não fosse o grito. Estridente e cortante ecoando por toda a mansão como uma faca perfurando meus tímpanos. Era ela.
Eu tratei de agarrar a tesoura sobre o tapete, agora imundo pela fuligem e sangue, e guardando-a no cós de minha calça me joguei no corredor escuro e frio, sem ter idéia de para onde fugir. Apenas uma única idéia me tingia a mente: Eu vou morrer! Não havia outra opção para mim, a assassina de seu querido caçador, a garota inútil que não era herdeira de nada. No entanto não havia opções de fuga também. De um lado do corredor eu podia ouvir os grunhidos coléricos dela, conforme caminhava em minha direção, e do outro lado eu podia ouvir os passos rápidos e ansiosos de algum criado bem intencionado que a obedeceria sem pestanejar, sem jamais me salvar.
Eu me lancei para dentro de um armário a frente da porta de meu quarto, me espremendo entre casacos e mantos cobertos de pó e aranhas. Eu os vi chegar pela fechadura, eu vi o rosto deslumbrante de minha madrasta, seus olhos fumegantes de rubi disparando em todas as direções e se estreitando quando viram a porta de meu quarto. Eu ouvi o grito de fúria doentia dela, enquanto ela reconhecia os restos mortais de seu precioso caçador. Eu a assisti sair com uma expressão diabólica de meu quarto, as garras cravando-se no batente enquanto fuzilava o corredor por onde um criado se aproximava.
- Minha senhora, precisas de algo? – era meu pai e ele parecia realmente preocupado.
- Onde ela esta?! – ela exigiu entre dentes, arfante pela fúria que a consumia.
- Eu... Eu... Na... Não sei, eu não a vi hoje... – sua voz assim como seu corpo tremia violentamente.
Ela gritou em fúria e impaciência. Era uma vez uma mulher fora do controle. Era uma vez uma mulher faminta por vingança. Eu assisti, embasbacada ela agarrar meu pai, um homem alto e esquelético, pelo pescoço e cravar-lhe os dentes em sua garganta. Eu assisti, horrorizada, um filete de sangue escorrer de seus lábios, enquanto via sua garganta trabalhando conforme bebia daquele homem. O homem gritava e lutava,arranhando-a e socando seus ombros, mas ela era forte demais. Não havia esperanças para meu pai, ou para mim. E esta constatação me fez sufocar um soluço. Sufocar mas não evitar.
Eu assisti seu corpo paralisar assim que me ouviu. Em um movimento brusco ela descolou seus lábios da garganta do homem, agora morto jogando-o como um saco de lixo ao lado, enquanto focava aqueles olhos de rubi no armário ao qual eu me escondia. Podia jurar que ela estava encarando o olho que estava colado ao buraco da fechadura. E isto me apavorou, ainda mais quando ela sorriu com aqueles lábios ensangüentados. O sangue se destacava em sua pele pálida. Vermelho e branco.
- O ratinho está gostando do espetáculo? – ela cantarolou – uma perda pela outra.
Ela abriu a porta do armário e como um raio envolveu meus cabelos em suas garras puxando-me com força para fora de meu abrigo. Eu gritei, dando adeus a varias mechas de cabelo.
-Todo ato aqui tem seu preço – ela me jogou de costas no chão, e me fitou com repulsa – ora Neve, este foi seu modo de atrair a morte? Dá pra ver em seus olhos de cristal, e em sua pele mutilada que você a vem procurando – ela lançou um rápido olhar em meus pulsos cortados e voltando-se para o cadáver de meu pai, embora eu não o considerasse mais assim. Não, aquilo ali era só um zumbi, e já fazia tempo – Devia saber que meus castigos não são tão misericordiosos.
Nós nos encaramos por alguns instantes, uma gota de sangue pendeu de seus lábios e caiu em meu rosto. Esta poderia muito bem ser uma lagrima de todo lamento, tristeza e ódio que borbulhava dentro de mim.
- Há muitas formas e meios de castigá-la pelo que fez – ela sorriu docemente – a noite é uma criança e eu vou me divertir muito com sua pessoa.
- Mudança de planos– disse erguendo a pistola que escondia nas mangas de minha blusa, apontando-a desleixadamente em algum ponto próximo de seu peito.
Logo após o disparo ela caiu no chão, e não me dei o prazer de vislumbrar aquela linda cena, da assassina de minha vida, esparramada no chão. Até porque isso não aconteceu.
Assim que ela caiu em me levantei de um salto, e me afastei apenas cinco passos quando a ouvi gritar, não de dor, era um grito divertido. Um riso diabólico. Meu sangue gelou e quando dei por mim estava correndo de volta a meu quarto, agora em chamas. Eu me esgueirei pelas labaredas, queimando meus pés descalços até alcançar a janela. Eu a abri com violência e enorme esforço. Não me abalei pelo cortante vendo que me golpeou a face, e tratei de passar pela desconfortável passagem e me lançar sobre o telhado da sacada logo abaixo. Eu colidi dolorosamente contra as telhas, certamente torcendo o tornozelo que agora latejava enquanto eu rolava sobre telhas, galhos, folhas secas e neve, até que o telhado havia acabado e eu despenquei até o chão. Minhas costas encontraram a terra firme em um som seco e uma dor sufocante que expulsou todo o ar de meus pulmões.
Enquanto eu arfava pela dor da queda, minhas mãos deslizavam pela fria e dura neve, a procura de apoio, suporte ou algum milagre perdido naquele vale morto. Só o que encontrei fora minha tesoura que havia caído de seu esconderijo, felizmente, não fora de meu alcance. Meus olhos lacrimejavam, pela dor, desespero e ódio que esquentavam meu corpo de um modo doloroso.
O céu estava tomado pela escuridão, sem lua ou estrelas, mas mesmo assim eu pude ver a silhueta dela me observando de cima do telhado. O lugar onde fora alvejada estava sujo por uma grudenta mancha de um sangue velho e escuro. Eu pude ver, mesmo a distancia e tomada por lagrimas, a fúria carmim de seus olhos. Eu pude ver minha morte. E era tão bonita...
Eu só pude vê-la dobrar o joelhos, como se fosse saltar, no instante seguinte ela estava literalmente sobre mim, cada pé de um lado de minha cintura, o corpo dobrado de modo que seu rosto estivesse a centímetros do meu, e ela estava com um sorriso insano e doentio. Um sorriso de um assassino. Eu tentei me mover, fugir ou lhe chutar as partes, mas o movimento fora cortado pela dor paralisante de meu tornozelo. Eu gritei de surpresa e dor, e ela sorriu satisfeita.
- Esta doendo? – sua pergunta era acida de sarcasmo – deixe-me dar uma olhada.
Eu estava presa em seu olhar, e ela não me libertaria. Eu pude sentir algo gélido sobre minha calça, um aperto de ferro ao redor de meu tornozelo, forçando e aumentando ali a dor. Eu cerrei os dentes para não gritar. E ela se esforçou para ouvir o que queria, e em um movimento ágil e seco ela quebrou meu tornozelo, certamente uma fratura exposta conforme eu sentia o calor do sangue encobrir meu calcanhar. Eu gritei em agonia, agarrando-me a neve enquanto lagrimas brotavam sem piedade de meus olhos. Ela sorriu satisfeita, e quando dei por mim suas mãos estavam em minha coxa, triturando meus ossos ali, me fazendo gritar insanamente. Ela ria prazerosamente, revelando-me presas mortais, sujas de sangue.
- Vejamos se você é tão intragável quanto seu pai – ela sussurrou em meu ouvido, estava tão próxima que seu perfume me impregnava as narinas. Doce, perigosamente doce.
Eu estava prestes a xingá-la com algumas dezenas de palavrões quando seu ato seguinte me tirou a voz. Sem aviso prévio, algo afiado e gélido cravou-se em minha garganta, abrindo caminho por minha carne com violência e descuido. Sua língua áspera e fria se infiltrava na ferida, abrindo-a ainda mais enquanto sugava de mim. A sensação de cada gole seu era ardente e de algum modo queimava. Eu gritei em angustia, não pela dor, mas pelo medo. Eu tinha de fazer algo.
Eu segurei com maior determinação a tesoura em minha mão. Eu iria cravar aquela porcaria na garganta da maldita. Mas para isso eu precisava de seus dentes longe de mim. Socar não adiantaria, chutar estava fora de cogitação, me sobrando apenas a improvisação.
Sentido as primeiras pontadas da dor da morte, agarrei seus ombros com minhas mãos e a puxei para mais perto de mim, impulsionando meu rosto para seu pescoço. Quando a distancia permitiu eu cravei meus dentes, como se abocanhasse uma saborosa maçã, rasgando sua carne e partindo seus tendões com toda a fúria que em mim existia. Inevitavelmente eu sorvi uma grande quantidade de seu amargo e espesso sangue. Era uma maçã envenenada.
Surpresa, ela afastou suas presas de mim aos berros, rasgando ainda mais minha garganta ao fazê-lo. Inevitavelmente meus dentes foram afastados de sua carne. Desfrutei dos poucos instantes de distancia que ela manteve sobre mim, para erguer minha tesoura e rasgar-lhe o pescoço. De ponta a ponta. Penetrando as laminas o mais fundo que elas conseguiram o que foi muito. Cortei-lhe a garganta como um jardineiro corta um galho seco.
Seu grito foi sufocado aos poucos pela falta de ar e afogado pela perda de sangue. Eu cobri meu rosto com minha mão livre, protegendo-me da chuva carmim que caia sobre mim de sua garganta degolada. Era sangue demais, velho e espesso. Eu arrisquei uma olhadela para a criatura que se debatia sobre mim, e nunca imaginaria que seria minha ultima visão viva.
Ela estava composta, os olhos semi serrados denunciavam-lhe a morte próxima, seu rosto estava coberto pelo vermelho e a fúria com que me fuzilava poderia por si só me incinerar. No entanto ela escolheu ser pratica ao me matar. Suas garras agarraram os dois lados de minha cabeça, eu pude sentir toda a pressão dolorosa que ela fazia ao me segurar fortemente, a única coisa de que me lembro foi o vislumbre de seus lábios movendo-se no que me parece um “Adeus”, em seguida eu não via mais nada e só podia ouvir o som dos ossos de meu pescoço se partindo definitivamente.
Era uma vez a historia de uma garota indefesa, branca como mármore a quem chamavam de Neve. Ela odiava seu nome, e vivia em uma prisão dourada e fria. Ela desejava um dia poder sonhar e fugir do pesadelo que vivenciava. Era uma vez uma garota que agora estava morta.
O primeiro inspirar fora um choque. Doloroso e inesperado. O ar se infiltrava por minha garganta seca, e rasgava caminho até meus pulmões adormecidos. Estranhamente aquilo me pareceu errado. Inútil. Houve uma vez o frio, houve uma vez a dor, houve uma vez o medo. Eu agora não os sentia mais. Eu agora não tinha mais lembrança da sensação de nenhum deles. Abrir os olhos não foi um desafio, mas a visão captada por meus olhos foi surpreendente. Um céu estrelado se abria para mim, estrelas que jamais vira, mesmo na noite mais clara. Não, meus antigos olhos não conseguiam enxergá-las. E enquanto eu as encarava, elas me faziam lembrar do porque tudo aquilo era tão estranhamente errado.
Eu estava morta. Eu não deveria ver, respirar, muito menos pensar. No entanto ali estava eu, deitada sobre o manto de neve, que agora não era mais tão frio, saboreando o ar da noite impregnado pelo sangue, e observando um céu que eu jamais sonhara vislumbrar. Mas eu sabia que estava morta, pois faltava um som. Um precioso som. Não havia nenhum pulsar, não em meus pulsos, não em meu pescoço, não em meu peito. Só havia agora aquela estranha e quente cócega em minha garganta. Só havia um par de presas no lugar de meus caninos. Só havia vazio em minhas veias secas. Só havia sede em minha mente.
Em movimento sobrenatural eu estava de pé, sem fazer uso de meus braços e pernas, agora milagrosamente restaurados. Eu vi pelo canto de meu olho o cadáver seco e estático de minha madrasta, agora minha criadora. Apenas um cadáver fétido. Eu não quis olhar para a mansão, ela não passava de uma cova agora, não havia sangue ali, e de nada me importava o resto. Ao invés disto minha atenção se voltou para a muralha que agora não passava de uma cerca para mim.
Era uma vez uma garota que passara a vida a viver um pesadelo, queimando as horas de seus intermináveis dias a encarar pela janela um mundo que só podia imaginar. um mundo que não pode desfrutar. Eu sorri para aquela historia, cujo final era infeliz. Era estranho ter se livrado do pesadelo, estranho ter finalmente caindo em um sonho. Eu me dirigi com passos rápidos e quando me dei conta já estava sobre o muro que eu jamais ousei tocar. O ar bagunçou meu cabelo.
Com a certeza de que levaria muitos séculos para acordar,eu me lancei ao fantasioso mundo que me aguardava, meus pés formigando pela sensação das ondas entre mês dedos...mas primeiro, eu precisava beber algo. Uma caçada de algo precioso. Um brinde ao novo sonho.
Era uma vez mais gritos. Era uma vez vermelho e branco. Neve suja de sangue.