nossa, amei seu modo de escrever.
é perfeito e sem duvida me cativou
Neve de Sangue
Era uma vez... Ou melhor... Houve uma vez uma garota que passou apenas 15 anos viva. Houve uma vez uma garota que cujo inverno odiava. Era uma vez uma garota que se chamava Neve. Houve uma vez em que eu era viva.
A neve sempre caia. Naquela pequena e mórbida cidade, ela sempre caia. Naquela frondosa e sombria floresta, ela sempre caia. Naquela mansão assombrosa e imponente, ela sempre caia. Lenta e preguiçosa como bailarinas rodopiando suavemente em direção ao chão, cobrindo a terra com seu macio e congelante manto branco, até onde os olhos podiam ver e o nariz farejar. Era uma vez um reino tomado pela morta neve. Uma neve que jamais derretia.
Aqui tudo é branco e cinza. Era uma vez uma realidade em branco e preto, assim como aqueles antigos filmes que estão estocados no porão agora, engolidos pela úmida poeira e roídos pelos dentes dos ratos. Mas a semelhança não me engana. Aqui a historia não se repete como nos filmes. Não há príncipes com espadas e alazões e nem amores milagrosos que por um passe de mágica e um ingênuo beijo iluminam a mais sombria e densa escuridão. Aqui nada pode me despertar. Nada para me iludir.
Eu via tudo pela janela. Eu não tinha nenhuma torre, apenas uma janela quadrada e alta em meu quarto cuja cama não tinha dossel e muito menos um closet de princesa. Todas as tardes eu encostava duas cadeira a frente dela, e sentava-me em uma e pousava meus pés na outra aquecendo minhas mãos ao segurar uma funda xícara de chá fervente. E olhava. Olhava o mundo de cristal do lado de fora que em nada me atraia. Olhava e sonhava. Olhava e me contava historias enquanto o tempo não passava.
Houve uma vez uma garota que com seus 15 anos já alimentava um rancoroso ódio pelo inverno, ela se trancava dentro de seu quente quarto, se aninhava ao lado das chamas de sua fiel lareira e evitava olhar pela janela, evitava pensar no frio lá fora, ignorava a neve. Ela se chamava Neve, e todas as vezes que seu nome era chamado ela rangia os dentes e cerrava os punhos, murmurando ofensas que lia em livros ou ouvia dos empregados rabugentos. Ela odiava seu nome. Mas ela sabia da historia dele, eles lhe contaram muitas vezes quando ia dormir. Contavam do dia de seu nascimento e como nascera morta, branca como mármore, sem um fio de fôlego ou um tremer de lábios. Sem uma chama de esperança. Eles lhe diziam com um brilho de fascínio em seus olhos e uma voz envolvente como a parteira estava prestes a lhe declarar morta quando a criança tossiu e cuspiu sabe-se Deus o que, e começou a chorar, um choro tão suave e leve que logo perceberam se tratar de um riso. Um riso cintilante e infantil. Um riso orgulhoso. Era como se ela estivesse rindo da parteira, como se tivesse acabado de lhe pregar uma peça. “Veja eu não estou morta sua velha caduca. Veja eu lhe peguei. Veja você caiu”. A parteira devia ser uma velha vidente, devia ter visto a futura aversão da criança pelo inverno e tudo que ele trazia. Porque outra razão apelidaria a criança de Neve? Sim, por vingança ela lhe apelidara de Neve na voz mais falsamente doce e carinhosa que seus dentes amarelos permitiram. Essa foi sua vingança para criança que nascera rindo enquanto sua mãe morria.
Era uma vez o poder da repetição. O apelido fora repetido tantas vezes, insinuado, somado ao meu nome, lembrado e estimulado. E como todo apelido egoísta e ambicioso, este empurrou, chutou e golpeou meu real nome para longe, jogou porta fora e trancou-a engolindo a chave para nunca mais entregar. Ele tomou a posição de meu nome e toda sua importância e responsabilidade sem me dar chance de lutar. Bebês não podem lutar.
Agora eu me chamo Neve, embora este não seja meu nome verdadeiro. Eu nunca ouvi meu verdadeiro nome, embora eu saiba que o tenho registrado em algum documento oficial, amarelado pelo tempo e embolorado, enterrado fundo dentro de arquivos oficiais cujo paradeiro desconheço. Eu deveria ir a um cartório e descobrir. Mas isso significaria sair. E eu não vou sair. Eu não posso. Não consigo.
Eu apenas posso olhar para fora, pois isso me é permitido. Posso sentir o frio através da janela congelada. Posso ouvir o distante e quase inaudível canto de um pardal que sempre estará longe de minhas vistas, alem do muro que rodeia o terreno e divide a floresta e o mundo real do jardim impecavelmente branco e morto da mansão. Eu odeio o mundo lá fora, porque ele sempre será inalcançável. Eu o odeio porque jamais serei capaz de prová-lo. Não como nos livros. Não como nos filmes. Eu o odeio porque não passa de um conto de fadas.
Mas a promessa que o horizonte além da muralha me promete pode às vezes ser muito mais agradável do que as historias que tenho. Às vezes eu imagino o mundo real, somo a esta realidade as informações que os livros me dão, como um dia ensolarado sem nuvens cinza e carregadas, e o que meus desejos anseiam, como a sensação da espuma do mar entre meus dedos. E nessas historias, que apenas narram cenários e possibilidades, eu encontro mais paz e consolo do que as historias que tenho. As historias que tenho não terminam em um “felizes para sempre”.
Era uma vez um homem que irradiava orgulho e confiança, como o sol escaldante de um verão no deserto, cujo rosto transmitia todos os sinais radiantes e fascinados de um coração apaixonado. Sua vida estava entrelaçada a uma jovem e delicada mulher, cuja beleza de traços simples a tornava adorável. Delicadamente adorável, como uma impressionante peça de cristal. Esse homem poderia muito bem ser considerado como um humano realizado. Rico em todos os sentidos que importam a um homem capitalista e romântico. Este jovem e comum casal, que amava,gritava, prometia, decepcionava, e conquistava um ao outro novamente, viveu plenamente a dourada jornada de suas vidas, mergulhados na certeza de uma eterna paz e segurança. Mas o amor não pode salvar. O amor não pode curar. O amor não pode ressuscitar. O amor só mata, de duas maneiras. Lenta e sutilmente ou rápida e repentinamente. Minha mãe escolheu a primeira opção.
Houve uma vez uma mulher que escondia um segredo. Uma mulher cujo rosto suave de traços comuns sustentava olhos impecavelmente claros e frágeis. Olhos moldados por olheiras doentias, sempre encobertas por camadas de mágica em pó de arroz. Uma mulher cujas mãos delicadas e os braços fracos não eram capazes de sustentar o dobro de seu peso. E cujas pernas tremiam e vacilavam todas as vezes que as erguia ao acordar, e ameaçavam desistir de sustentá-la a qualquer momento. Sua pele era pálida e sem vida, sua carne macia e frágil. Uma mulher de cristal, quebradiça, mas que possuía uma voraz determinação que chamava de amor. Ela reunia suas forças ao lado do marido para sustentar um saudável sorriso. Aquela mulher era guardiã dos segredos de sua alma, ela o conhecia intima e completamente. Ela tinha ciência de seus desejos e anseios. Ela sabia de suas ambições. Ela o amava o bastante para realizá-los, embora não fosse saudável. Contrariando as palavras dos bons e respeitáveis médicos que lhe alertavam, com todas as suas décadas de experiência e respeito, o perigo ao qual ela se colocava, ela engoliu seu segredo, escondeu sua doença, ocultou seu mal interno que lhe consumia mês após mês e passou a dedicar seus dias futuros, suas contadas respirações e seus determinados batimentos para dar vida ao desejo de seu amado. Eu sou o ultimo ato de amor de uma mulher.
Eu suspirei pesadamente me afastando, como tantas vezes antes, daquela historia de “mortos para sempre”, concentrando-me em observar meu hálito, que cheirava a canela e camomila do chá, se grudar na fria janela e embaçar o vidro bloqueando o mundo de cristal lá fora. Eu não me irritei ou me entristeci com isto. Eu não me importava em ver ou não algo que não me pertencia ou existia. Garotas mortas-vivas não se importam. Garotas como eu não sentem. Garotas como eu apenas assentem. Apenas dizem sim, mantendo os olhos sempre baixos, sempre.
Eu voltei meus olhos para a grande e funda xícara em minhas mãos, cuja porcelana branca estava enfeitada por rosas vermelhas. Tudo aqui era vermelho e branco. Eu fitei os pedaços de canela boiarem leve e tediosamente sobre o chá agora frio. Tudo aqui era frio. Todo o calor aqui acabava por se extinguir. Eu era prova viva, agora meio morta, disto.
Era uma vez um homem que perdera tudo. Um viúvo que não conseguia mais encontrar a próprio orgulho, de que tanto esbanjava. Perdera a confiança que antes o mantinha erguido na mais imperturbável postura, protegendo-o da mais tola queda. Um homem que não sabia mais como sustentar um sorriso descontraído por mais treze minutos. Um sol que havia se enfraquecido. Seus escassos raios de vida e satisfação agora só transpunham a neblina do luto quando tinha sua filha a suas vistas. Ao lado da pálida e risonha criança seu rosto tomava novas feições, o que antes era velho e desfalecido agora era sereno e afetuoso. Seus dias se dividiam entre o lamentar corrosivo perante o mausoléu onde sua alma estava encerrada e a razão pacificadora diante a criança que agora estava determinado a proteger e criar. E enquanto ele a embalava em seus braços durante horas a fio, aquecendo-a com o que restara do calor de suas canções, era possível vislumbrar em teu rosto um sorriso, não um apaixonado e maravilhado, digno de um pai de primeira viagem extasiado, mas sim de um homem grato pelo presente de misericórdia que lhe fora dado. Um homem determinado a seguir, a viver com o que tinha em mãos. Um homem determinado a não falhar. Um homem que me amou. Por um tempo
Minha garganta se contraiu com o gosto ruim que a historia me trazia. Um gosto amargo e pútrido. Digno de algo morto e venenoso. Eu entornei o que restara de meu gélido chá, e estremeci enquanto sentia o frio escorrer por minha garganta, deslizando como uma serpente até meu estomago, deixando um longo e permanente rastro de frio que fazia minha coluna estremecer.
Cansada da sensação de enjoou que o cenário me trazia eu me levantei de minha cadeira e ignorando as dores em minhas pernas arrastei-me até a minha lareira, cujo fogo baixo não era capaz de se apossar do cômodo inteiro. Algo tão fraco e sereno não era capaz de vencer. Eu fui até o baú aos pés de minha cama, abrindo-o eu cavei entre os livros e roupas que ali estavam enfurnados em um sombrio caos de tecido e papeis até meus dedos colidirem com a superfície lisa e fria do vidro da garrafa de whisky que eu ali escondia. Eu a puxei para fora das profundezas do baú, trazendo-a para a dourada luz de meu quarto, provida por três abajures. Eu a conquistara há três dias e a garrafa já se encontrava pela metade, um bom sinal se comparar com sua antecessora que fora esvaziada por completo no mesmo dia de sua captura. Mas os motivos tornam tudo justificável. Eu sacudi a cabeça enquanto as lagrimas ardiam em meus olhos e meu corpo formigava em pânico. Não! Esta historia não!
Eu me agarrei ao presente. Eu me agarrei à garrafa levando-a a meus lábios e engolindo um longo e ininterrupto gole de fogo líquido, como só um apreciador de álcool é capaz. Eu joguei minha cabeça para trás enquanto meu corpo derretia-se naquela agradável sensação de calor. Como era bom arder! Algo fraco e sereno não pode vencer, no entanto, sem um combustível. Eu fui até a lareira agarrando a xícara no meio do caminho e enchendo-a com a bebida até ameaçar transbordar. Em seguida, tomando uma pequena distancia, eu joguei seu conteúdo contra as chamas preguiçosas que dançavam suavemente em minha lareira. Agradecido o fogo consumiu o álcool como um maratonista desidratado, queimando ruidosamente e expandindo-se em uma furiosa bola de fogo que avançou para longe da lareira clareando todo o recinto como um relâmpago. Logo seu fervor esvaneceu-se um pouco, mas sem perder a fúria com que suas chamas ainda persistiam em estalar e chicotear para fora das grades da lareira cobertas de fuligem, muitas das línguas de fogo ameaçando chamuscar o tapete próximo. Veja só, com um pouco de ajuda uma faísca pode se tornar um incêndio. Basta combustível. E um feroz desejo.
Era uma vez um homem e sua filha. Era uma vez uma desfalcada porem feliz família. Onde um apoiava-se no outro. Onde um necessitava do outro. O homem agarrava-se a sua filha, razão e motivação de sua existência, amando-a e criando-a. A filha agarrava-se a seu pai como qualquer criança boa o bastante é capaz, amando-o com seu instinto natural de filha e necessitando-o para guiá-la neste mundo desconhecido. Uma família comum, que dispunha de típicos atrativos físicos e financeiros, como belíssimos rostos e uma mansão imponente. Naquela época o tempo passava de modo rápido, corria com pressa e sem temor, fazia-me crescer repentinamente, matava dia após dia a criança que meu pai não tinha medo de criar. No entanto, o homem não estava preparado para educar uma garota que prometia se tornar uma mulher em breve. Ele temia poder falhar. E ele não admitiria falha. Não sobreviveria a outro fracasso. E é nas fendas da insegurança que as víboras se esgueiram e invadem.
O estrondo das portas sendo fechadas com violenta força vez novamente as janelas de meu quarto vibrarem. Eu sempre achei que apenas janelas de casebres vibravam quando portas fechavam. Recentemente eu percebi que o que conta é a força com que se bate uma porta. É sempre a força. De qualquer modo o barulho fez com que meu estomago se encolhesse, levando a minha coluna a se curvar sobre ele. Se curvar em pesar. Afinal, ela esta em casa.
Houve uma vez um lar. Um imenso e vasto lar em forma de uma impetuosa e admirável mansão. Uma mansão que irradiava magnificência. Seus muros protegiam um vasto terreno onde uma requintada e clássica construção se erguia em três andares, repleta de espaçosas sacadas e altas janelas que possuíam arcos de concreto adornados por arabescos dourados que lembravam,cheiravam,e brilhavam como ouro. E toda essa majestosa construção estava rodeada por um rico e florido jardim de todas as mais exóticas e peculiares espécies de flores e arvoredos, famosa pela vasta quantidade de frutas que provinha para a confecção dos mais suculentos doces que eram facilmente encontrados a mesa do café da manhã. Os fundos da mansão por sua vez davam par um extenso campo aberto até chegar as primeiras arvores da floresta que rodeava a mansão como sua única vizinha. Havia calor dentro daqueles cômodos e não era preciso manter as lareiras acessas. Havia luz naqueles recintos, e não a ardilosa penumbra de agora. Houve um lar aqui uma vez.
Agora aqui não resta nada alem de um casarão. Aqueles dignos de historias de fantasmas e atrocidades. Cujos porões estão entupidos de ratos, brutalidade e mistérios. A própria mansão se tornara um fantasma, com seu jardim agora morto e sua imponência manchada pela vergonha de ser invadida. Os empregados agora se sentem como escravos. Escravos que mantêm os olhos baixos, receosos de acabarem tornando-se tinta para as paredes. Pois aqui tudo é branco, e eventualmente vermelho. Aqui é barulhento e eu detesto isso. Eu detesto os gritos.
Era uma vez uma... Uma... Uma criatura. Sua carne transpirava ganância e sua saliva gotejava uma venenosa ambição que escorria de seus lábios na forma das mais doces e suaves palavras, formando sentenças e promessas sedutoras. Sua forma de mulher era apenas uma de suas incontáveis iscas. Curvilínea e esguia. Loira e de pele translucida parecia-se com aquelas bonecas de porcelana, ainda mais tendo um rosto tão proporcional e harmonioso. Um rosto impecável de lábios fartos, nariz reto e olhos perigosamente hipnotizantes. Uma víbora em forma de cordeiro. Uma bruxa em forma de miss. Essa mulher, que eu insistentemente chamava de bruxa em meus pensamentos mais ácidos e furiosos como se assim pudesse transformar aquele apelido em seu nome. Essa serpente oportunista e maliciosa ergueu-se do inferno de onde fora criada, abandonou o ventre maligno e maldito ao qual fora gerada para surgir em nossa historia como uma imensa e sufocante nuvem negra, arrancando a força o sol e a vida que ele trazia e acorrentando o mundo abaixo a uma eterna e completa escuridão, frio e mórbido. Ela arrancou a luz de mim. Ela arrancou a paz de mim. Ela arrancou meu pai de mim. E arrancaria minha vida muito em breve... Ela sugaria tudo.
Eu me lembro. Lembro do dia em que ela chegou a esta casa. Lembro-me de meu ultimo dia de conto de fada. Lembro-me de como meus olhos infantis se maravilharam com sua beleza, e como minha mente estúpida desejou por uma fração um dia me tornar tão esplendorosa quanto ela. Lembro-me de ter tido esperanças. Mas isso foi antes do primeiro golpe. Isso foi antes de eu conhecer seu poder.
Em uma manhã eu notei que havia morrido. Ao menos para meu pai eu havia, pois era assim que ele me via, como um fantasma sem importância e às vezes com pesar eu assistia seus olhos me fuzilarem com repulsa. Eu gostava de imaginar que havia morrido para seus olhos, embora pensasse que ele me considerava tanto quanto a um rato. Antes morta do que igualada a um rato. Eu preferia imaginar que ele não me via. Cego pela nevoa de fascinação que a presença da víbora lhe proporcionava.
Ela era talentosa. Uma belíssima atriz. Eu a assisti nos meses seguintes, vendo-a iludir e satisfazer meu pai que embora ludibriado pela beleza e doçura ainda possuía uma faísca de cautela e perspicácia. Ela era paciente. Ela avançou terreno lentamente, centímetro por centímetro, sem pressa. A cada dia ela lascava um pouco mais a muralha que protegia meu pai de seus encantos diabólicos. Até que o buraco era suficientemente grande para ela se enfiar e cravar suas garras no coração frágil e debilitado de meu pai. E nas garras dela, toda sua determinação virara pó. Toda sua imponência gélida e imutável se derretera diante do calor fulgurante daqueles olhos diabólicos. Meu pai morrera então, substituído por uma marionete cujas cordas eram curtas, impossibilitando qualquer fuga.
Era uma vez uma bruxa que invadira um lar, e dele sugara toda a vida e esplendor, enchendo suas assas de demônio com todas as riquezas em que suas garras se recaiam. Era uma vez uma mansão que se transformara em um mausoléu, frio, escuro e condenado a morte. Era uma vez uma mulher maldita que matara um homem e sua filha, deixando apenas seus corpos sem vida e determinação perambulando pela mansão. Era uma vez um monstro que tornara tudo branco e vermelho.
Desde aquele momento eu acordara de meus contos de fada. Desde aquele dia eu venho me contando historias e sonhando acordada. Cinco anos já se passaram no tempo que antes 10 anos correriam rapidamente. Há cinco anos eu sonho este pesadelo de olhos bem abertos.
O som da porcelana se partindo me fisgou de meus pensamentos sombrios, e me puxou para a superfície com violência, como um teimoso peixe ao ser arrancado das águas por mãos determinadas e braços fortes. Meus olhos deslizaram exasperados para a mão ensangüentada que ainda segurava os cacos afiados e manchados do que antes fora uma xícara. Eu assisti entorpecida pelo choque uma gorda gota de sangue escorrer da porcelana e gotejar, indo cair rapidamente no tapete creme a meus pés, sempre sujo de fuligem. O sangue se esparramou no carpete, destacando-se na superfície clara. Novas gotas acompanharam a irmã, o que não passava de um sinal de que o sangramento estava aumentando.
Eu joguei o que restara da xícara dentro da lareira. As chamas gratas por distração começaram a lhe lamber e queimar, incinerando o sangue ali. Mordendo o lábio inferior por conta da ardência que se esparramava por minha palma ensangüentada e aberta eu corri até minha cômoda, abrindo-a e tirando de lá uma velha toalha de rosto e dois lenços de linho, eu levei tudo a minha cama onde me sentei e tratei de avaliar meu mais novo ferimento. Havia um pedaço da porcelana cravado ali em minha carne, pelo que podia sentir não era tão profundo, meio centímetro a um e meio se fosse tanto assim, o que realmente não achava. Arranhões sempre sangram mais do que precisam. Era o que meu pai sempre me dizia quando eu ralava meus joelhos no jardim. Ele sempre tinha ótimas frases...
No entanto olhando para aquele liquido escarlate não pude evitar as palavras que estampavam minha mente toda vez eu via aquela cor. Eu aprendera seu significado com a víbora. Eu aprendera muitas coisas com a víbora, e não orgulhava-me de nenhuma. De todo o modo, eu encarei aquele vermelho, eu encarei a vida. A vida escorrendo entre meus dedos, como fazia todos os dias. Eu me perguntava quando é que ela acabaria, quando não haveria mais nada para escorrer. Pois isso inevitavelmente iria ocorrer. Um dia a Bruxa iria me sugar por completo, como fazia com o resto.
Ignorando a dor, como agora era perita em fazer eu agarrei o pedaço de porcelana que se agarrava a minha mão como um carrapato e sem pudor ou hesitação eu o arranquei em um movimento rápido e seco... A carne nas beiradas do ferimento formigava e ardia em longos choques de dor. Dor esta que suportei como um soldado que carregava cicatrizes muito piores. E de fato eu já sentira algo pior. Minhas pernas estremeceram na altura de minhas coxas o que me deixou enjoada. Certamente eu já sentira coisas piores, dores muito mais invasivas e repugnantes que proporcionavam um ódio que doía mais do que o próprio corte.
Sacudindo novamente a cabeça para os pesadelos que participei eu agarrei a toalha e a pressionei no corte que transbordava com o sangue fresco, quente e vibrante que corria livre de meu corpo. Após limpar o máximo que pude do sangue que o ferimento vertia, minha mão se encontrava vermelha pelo sangue seco e que somente água seria capaz de eliminar por completo. O corte realmente não era profundo, mas extenso, tomando toda minha mão, de uma ponta a outra. Um extensa linha escarlate, de onde podia se ver um pouco de carne.Eu agarrei os lenços de linho e envolvi minha mão neles, atando-a firmemente e cobrindo por completo o ferimento que manchara um pouco o primeiro lenço mas ainda não atingia o segundo. E quando eu havia terminado de dar o laço nas minhas improvisadas ataduras os sons começaram. Eles sempre voltavam...
Gritos abafados e baixos. Distantes demais para serem compreendidos. Distantes demais para se ter certeza de tê-los ouvido. Apenas mais fantasmas naquela casa mal assombrada. Mas estes fantasmas não eram como os outros. Não eram como os empregados/escravos, não eram como meu pai, e não eram como eu. Não eram conformados e resignados. Não, estes ainda continham vida na voz, ainda estavam determinados. Ao menos desesperados.
E eu os ouvia. Há cinco anos eu os ouvia. E eu notava cada novo tom de voz, cada nota mais aguda ou grave, que eu somava a galeria. Todas as tardes, quando o sol começava sua descida ao horizonte para aquecer o outro lado do planeta, o terror se instalava abaixo da mansão, e a cada noite, as vozes eram diferentes... Novas. Eu nunca ouvi a mesma voz em noites seguidas.
De qualquer modo era motivo o bastante para enlouquecer qualquer um. Antes eu achava que realmente poderia haver algo horrendo ocorrendo sob a mansão, mas com o tempo e a repetição, minha exausta mente julgou ser uma alucinação de minha imaginação. Eu estava tão desorientada e furiosa... Eu estava morta e agora ouvia os demais fantasmas, sim isso era plausível e até mesmo confortador se comparado a outra opção, de que algo hediondo ocorria bem abaixo de meus pés. Que pessoas desesperadas gritavam por socorro bem abaixo de meus pés.
Mas misericordiosamente elas se calavam antes que eu tivesse que tomar uma atitude ou conseguisse encontrar a origem do som. Em algumas noites subitamente, como um interruptor sendo desligado, o que sempre me fazia lembrar de pescoços de galinhas sendo quebrados.Uma parte de mim se contorcia envergonhada por nada fazer, mas esta sempre era amparada de seu remorso pela consciência que lhe apresentava as lembranças de empregados desaparecidos que haviam feito perguntas demais.
De qualquer modo não havia silencio por muito mais tempo, pois logo em seguida as janelas estremeciam com mais uma porta sendo batida com violência, e a partir daí os passos rudes e barulhentos enchiam a casa conforme eles perambulavam sem rumo pela mansão, às vezes rindo, às vezes brigando, às vezes... Eu não sabia como chamar aquele som úmido de lábios se movendo uns sobre os outros. De qualquer forma, já fazia cinco anos que eu não sabia mais o que era silencio. Ao menos não à noite, a hora em que ela despertava.
Continue --->
Tags:
Tópico: Neve de Sangue - Parte I
amei
Data: 31-08-2013 | De: 1D