Lobo Mal - Parte 2

30-12-2010 02:00

 

 

Meus passos colidiam duramente contra a terra úmida e grudenta. Podia sentir a camada de lama, folhas secas e pedrinhas que cobriam a sola de meus pés descalços enquanto corria persistente por entre os frondosos e gigantescos carvalhos da floresta. Sem rumo, eu corria apenas na direção que me deixaria o mais longe possível do uivo, das garras e das presas. Minha capa vermelha esvoaçava ao meu redor, sacudindo-se violentamente pela corrente de ar que a corrida proporcionava; aquilo somado a luz do luar apenas auxiliava para a aparência fantasmagórica a qual eu deveria ter com minha pele alva. No entanto nunca me sentira tão viva. Como um cavalo selvagem a muito trancafiado eu desbravava o labirinto de troncos e folhas com avidez e força. Minhas pernas se deslocavam com vigor e agilidade sem se deixar abalar pelos galhos que roçavam minha pele exposta, arranhando-a e cortando. Meus nervos e tendões trabalhavam com ânsia e veemência, determinados a não parar e não se cansar.

Saltei um enorme tronco velho coberto pelo verde musgo, e pousei duramente em cima de um arbusto repleto de espinhos. Os senti perfurando minha carne, penetrando em meus pés e arranhando meus calcanhares como dentes roçando-me. Joguei-me ao chão rolando para longe daquela armadilha natural. Minhas costas permaneceram coladas a terra, enquanto eu arfava e meus pés cicatrizavam lentamente. Por um instante me permiti desejar desespera-damente poder me camuflar entre as folhas e gravetos. Desejei que meu cheiro não o chamasse. Eu implorei, mas fui cruelmente ignorada. Um sussurro ecoou; um uivo de aviso.

Virei-me e em um salto me pus de pé, ignorando as dores latejantes das feridas recentes eu tratei de correr deixando atrás de mim um rastro de som de gravetos se partindo e meu cheiro característico.

Eu queria ter um plano, uma rota de fuga infalível. Eu queria uma fortaleza intransponível onde pudesse me trancar. Eu não tinha nada, alem da certeza de que ele iria me alcançar.

Um caroço se instalou em minha garganta e só depois de alguns minutos compreendi que aquilo era meu pavor. Pavor por imaginar suas garras me alcançando. Pavor por imaginar ele me tomando para si... Tornando-me um monstro igual a ele.

Eu arfei atrás de ar enquanto disparava por entre carvalhos e arbustos frondosos. Girei meu corpo em direção ao som da água que vinha ao longe. Música divina aquilo era aos meus ouvidos. Um rio. Lagrimas de esperança embaçaram minha visão. A água aliviaria meu cheiro, mascararia meu trajeto.

Assim era minha esperança antes de eu ouvi-lo novamente. O uivo feroz e profundo vinha da minha esquerda próximo demais para qualquer esperança sobreviver. Se continuasse em linha reta em direção ao lago ele me alcançaria. Rangendo os dentes eu desviei meu trajeto, tomando o rumo oposto do ponto onde o uivo soava.

Engoli um choro infantil e angustiado, mesmo que não fizesse mais sentido manter o silêncio. Ele estava em meu encalço. Ele me alcançaria com suas quatro patas sem grandes esforços. Meus olhos vagaram para o céu em desespero, fuzilando aquela odiada lua cheia que me amaldiçoava a cada instante. Vi com estranheza uma enorme e pesada nuvem a cobri-la e no instante seguinte um raio rasgar o céu anunciando a tempestade. Grossas e duras gotas d’água despencaram do céu com violência em uma tempestade abrupta e cruel, colidindo contra minha pele como pequenas pedrinhas que doíam desconfortavelmente. Água... Bendita água que me embaçava as vistas e lavava meu aroma.

Meus pés tropeçaram em uma funda poça de barro pegajoso, e pela segunda vez cai ao chão. Arfante, afastei meus cachos do rosto e puxei com urgência meus pés para longe da terra. Um uivo, terrivelmente próximo se fez presente, congelando meus ossos. Meu coração encolheu-se já em pânico.

“Aqui não! Aqui ele lhe verá! Esconda-se!” as palavras emergiram de meus neurônios violentamente, como relâmpagos, sacudindo-me como um trovão.

Engolindo o choro, pânico e desespero que se entalavam em minha garganta eu me pus de pé e corri a me esconder nas sombras de um carvalho próximo encolhendo-me atrás de um arbusto volumoso e alto.  

Cruzando as mãos em meu peito concentrei-me em refrear o pânico que ameaçava escapar de mim em forma de choro, acalmar meu coração que pulsava audível e furioso em meu peito, e escutar o ar ao redor.

A tempestade complicava tudo. Não era somente minha visão que ela limitava, mas minha audição também se atrapalhava em sua tarefa de captar uivos, rosnados e passos com todo o caos sonoro que os ventos violentos e a água despencando do céu causavam. Fechei os olhos esforçando-me em ouvi-lo. Onde você esta... Onde você esta... Eu me remoia nesses pensamentos enquanto tentava captar seus rosnados baixos, suas pesadas patas contra a terra molhada. Vamos quebre um galho... Uive... Apareça...

Um grunhido rouco e selvagem irrompeu em meio à chuva seguido pelo som de galhos se estalando e partindo-se. Meu coração paralisou. Tão próximo, lamentei em notar. Lágrimas desesperadas emergiram de meus olhos misturando-se as afiadas gotas de chuva que me golpeavam o rosto. Tão próximo.

Levei minhas mãos, sujas de terra e folhas secas, à boca para impedir o choro que me retorcia por dentro. Ele estava ali. Era tarde demais para correr. Era tarde demais para mim. Uma forte rajada de vento arrastou-se pela minha direita afagando minha bochecha e trazendo seu odor de cachorro molhado e fera incontrolável. Eu virei meu rosto para a direção do cheiro a fim de avistá-lo o mais cedo possível. Talvez eu tivesse uma chance... Talvez ainda pudesse escapar. Talvez toda aquela esperança fosse vã e estúpida, mas eu não tinha coragem de ignorá-la.

Forcei meus olhos a tentarem ver qualquer vulto animalesco e imenso naquela direção, mas só enxergava chuva, folhas e galhos sendo levados pelo vento naquela vasta escuridão, sombria e hostil. Onde você está... Vamos... Apareça. E minhas idéias foram atendidas.

Um rosnado selvagem e hostil se arrastou até meus ouvidos como um trovão, vindo de minhas costas. Meu corpo congelou-se à medida que meu coração parava de bater e meus pulmões esqueciam-se de respirar. “Vire-se! Mova-se! Reaja!” as palavras me descongelaram. Como martelos contra o gelo.

Lenta e relutantemente me desloquei para olhar o arbusto ao meu lado o qual eu utilizara para me esconder por parecer um refugio genial, desejando não avistar absolutamente nada. Eu não fui atendida.

Ali, entre a profusão de galhos, folhas e espinhos, estavam dois olhos amarelos que cintilavam diabolicamente para mim a um metro de distância na mais positiva das idéias. Um raio cortou o ar não muito longe trazendo uma repentina e momentânea luz a cena, fazendo suas presas expostas cintilarem úmidas na minha direção.

Arfando um grito de puro pânico e horror eu me arrastei para longe daquele arbusto e da fera. Meus pés chutavam a terra desorientados conforme minhas mãos agarravam a terra as minhas costas e me puxavam para longe. Eu não ousava desviar meu olhar daqueles olhos.

Como duas luas cheias sobrenaturais, seus olhos balançaram em meio à escuridão conforme seu corpo se aproximava por entre os galhos e folhas, ignorando os espinhos que se enroscavam em sua pelagem negra e molhada. Seu focinho abriu caminho primeiro, os lábios superiores erguidos animalescamente para revelar uma carreira de dentes afiados que gotejavam sua saliva fétida, enquanto rosnava ameaçadoramente, alertando-me. Fique parada! Era o que aquele som me ordenava.

E enquanto avistava todo seu vulto imenso e musculoso emergir por entre os galhos eu não conseguia nem ao menos cogitar aquela idéia. “Corra! Corra! Corra!” as palavras gritaram histéricas.

Eu me virei e levantei-me aos tropeços tentando ao máximo assumir uma velocidade mais do que inumana capaz de me tirar daquele pesadelo. Ouvi o urro selvagem e trovejante logo atrás, assim como ouvi o som de suas patas colidindo contra terra lamacenta enquanto saltava até mim.

Era tarde demais, eu tentei me consolar enquanto sentia suas patas contra minhas costas. Meu corpo fora de encontro ao chão, rolando alguns metros entre pedras que me apunhalavam o corpo cruelmente. Era tarde demais, e mesmo assim, teimosamente eu me ergui em meus braços assim que parei de girar arrastando meu corpo dolorido por estúpidos e inúteis centímetros. Era tarde demais, foi o que seus dentes ao redor de meu tornozelo me mostraram. Senti a carne rasgar, os tendões se partirem e os ossos rangerem até que o estresse fora demais e eu exausta, dolorida e desesperançada cai na inexistência da inconsciência.

 

 

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